sexta-feira, 1 de maio de 2009

A EDUCAÇÃO NA FESTA: TECEDURAS DA CULTURA POPULAR NA FESTA DE SÃO BENEDITO, EM CUIABÁ

A Educação na Festa: teceduras da cultura popular na Festa de São Benedito, em Cuiabá

Dejacy de Arruda Abreu
Mestre em Educação Universidade Federal de Mato Grosso


A pesquisa sobre a Festa de São Benedito foi desenvolvida no espaço da Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Cuiabá – Mato Grosso. Buscou estudar e compreender a Festa como estratégia de educação e formação para a cidadania. Esta pesquisa se refere à Festa realizada em torno de São Benedito, santo negro, filho de escravos, nascido na Itália, e festejado também em Cuiabá de maneira muito significativa há quase três séculos, de modo que há cenário e espaço diferenciados no que diz respeito à Itália e a realidade brasileira, mato-grossense e cuiabana. A devoção a São Benedito em Cuiabá tem seu marco inicial, segundo os relatos históricos, entre os anos de 1719 e 1722.

Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário em Cuiabá, Mato Grosso.
Foto: Dejacy Arruda Abreu

Em Cuiabá a devoção a São Benedito é tradição dos negros escravos e ex-escravos, pessoas simples e pobres que parecem ter encontrado no santo um alento de esperança diante da vida dura que levavam nas terras cuiabanas. O culto a São Benedito e a tradição da Festa nasceram junto ao povo sofrido, pobre e negro de Cuiabá.

Estudando uma Festa tradicional cuiabanidade, como a de São Benedito fui entendendo, com o auxílio de fontes documentais e também de relatos atuais dos devotos, que a Festa nasceu em terras mato-grossenses juntamente com a conquista.
O tempo desta Festa, em Cuiabá, é atípico. Ela não coincide com o nascimento, com a morte e nem com a canonização do santo. Segue o calendário da Festa do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, atualmente celebrada na Igreja Matriz, a Catedral Metropolitana.
A do Divino foi considerada, nessas terras, como a grande festa. A de São Benedito era uma Festa menor, sem nenhum prestígio social. Por isso os devotos desse santo, com as sobras da festa do Divino faziam a sua festa.

Produção da paçoca de pilão, comida tradicional da Festa de São Benedito em Cuiabá Foto: Dejacy Arruda Abreu

Com o crescimento da devoção a São Benedito devido aos muitos milagres atribuídos a ele, o santo se popularizou a ponto de ser considerado atualmente como protetor da cidade, enquanto o Divino continuou sendo o padroeiro. Uma enquete dirigida aos cuiabanos sob o título "O Santo e a Festa que têm a cara de Cuiabá", feita pelo Jornal Diário de Cuiabá e publicada no Caderno Especial de Cidades, traz o seguinte resultado:
Qual santo de devoção tem a cara de Cuiabá?

São Benedito 60,6%

Senhor Divino 18,6%

São Gonçalo 12%

Bom Jesus de Cuiabá 6,1%

Qual festa popular tem a cara de Cuiabá?

Festa de São Benedito 67,6%

Festa do Senhor Divino 22,3%

Micarecuia 5,5%

Carnaval 2,5%

Falar da devoção a São Benedito em Cuiabá e de sua Festa na Praça do Rosário é falar da cultura mato-grossense. Foi nessa diversidade cultural, sobre a qual fala o historiador Costa e Silva, que localizei os devotos do santo negro
Formada pela intrepidez do bandeirante, pela bravura do negro escravo e pela inocência do índio aguerrido, é a nossa cultura o que há de mais representativo da herança congênita dessas três raças. Representa a nossa história, a nossa memória social, as tradições, técnicas, experiências, crendices e acúmulo de conhecimento de quase três séculos de miscigenação racial. Nessa simbiose de civilização está a cultura mato-grossense. (Costa e Silva, 1997)

A Festa de São Benedito chegou com as levas de migrantes que, pouco a pouco, ocuparam a região que hoje é denominada Mato Grosso. Estes, instalaram-se no centro de maior circulação de pessoas e de exuberância do ouro: Cuiabá. Essas levas de migrantes provenientes dos quatro cantos do país e outros tantos grupos estrangeiros, especialmente portugueses, trouxeram em sua bagagem diferentes costumes, ritos e jeitos peculiares de ser e viver. Essa Festa reflete certa síntese cultural dos vários grupos étnicos, resultando na mestiçagem que vai revelando as características próprias do povo mato-grossense: afro-ameríndio. Descendente de negros trazidos para preação de índios em terra de etnia Bororo em suas diversas denominações:Paiaguá, Guaicuru, chapadense e tantos outros que ocupavam o território que então abrangia o atual Estado de Mato Grosso do Sul, nos limites do município de Camapuã, prolongando-se ao norte até próximo ao que hoje chamamos "Nortão", a mil e duzentos quilômetros acima de Cuiabá.

Evidencia-se na grande maioria dos devotos da Festa de São Benedito a inclusão de elementos culturais advindos do branco e do negro e do modo de sentir Bororo. Cuiabá expressa uma certa síntese dos diversos segmentos culturais vivos em Mato Grosso, por meio do folclore, da literatura, das artes plásticas, do teatro, da música, do artesanato ou, mesmo, dos apetitosos pratos da tradicional culinária cuiabana, os quais recebem especial atenção como referência e chamariz nas Festas de São Benedito.

Procissão de São Benedito, em Cuiabá, Mato Grosso, 2006 Foto: Dejacy Arruda Abreu

É nesta voragem de mergulho numa humanidade singular, cuiabana, mestiça, sincrética, que se derrama no corpo e na alma, que o processo de criação de humanidade flui: processo educacional profundo, artesanal, que supera as linhas de produção em série da educação escolar, encharca o cotidiano das casas, dos povoadores e emerge no espaço e tempo da Festa.

A investigação desse objeto possibilitou compreender o sentido da Festa de São Benedito num contexto cuiabano intercultural, quando emerge, reiteradamente, uma simbologia espaço-temporal de diáspora que nega e afirma, bem como produz e reproduz, educacionalmente e de forma coletiva, identidades que carregam interesses contraditórios do ponto de vista econômico, simbólico e político.

A Festa dentro desse contexto de contradições se revelou como estratégia de educação e formação para a cidadania. Ela, de diversas formas, oferece aos festantes um aprendizado que tem a ver com seu próprio cotidiano, sua participação e atuação social, seu estar no mundo. Dentro desse espaço, chamo esse aprendizado via Festa de ações educativas socializadoras compreendendo que é esse o papel da Educação, seja ela formal ou não: o de estabelecer diálogo comunicativo dos seres humanos entre si, com os outros e com o mundo, de forma a fazê-los membros de sua sociedade, integrando-os, homens e mulheres, no seu meio social e cultural como atores e protagonistas de sua própria cidadania.

A devoção e suas práticas possuem muitos aspectos formalmente não-religiosos: a submissão aos mais velhos, o acolhimento e a reiteração da tradição familiar local, a circunscrição dos novos devotos na esteira da visão do mundo, dos valores e de deveres contraídos com a comunidade; o compromisso com a vida, com o respeito aos outros, com o reconhecimento dos mais pobres, e de justiça distributiva, valores estes que são reconhecidos pela sociedade e ligados a “pessoas de bem”.

Para entender o que acontece no sentido de aprendizagem não formal, mas da convivência, apóio-me na visão e percepção do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (2002a, p. 141):

[...] todo acontecimento da educação existe como um momento motivado pela cultura. Mas toda cultura humana é um fruto direto do trabalho da Educação. [...] aprendemos na e da cultura de quem somos e de quem participamos (grifos do autor).

Apoiada em Brandão no que se refere à Festa, concebo-a como tempo e espaço de aprendizagem. O aprender na Festa pode estar misturado com as coisas da vida e apresentar-se como cultura cotidiana, não do rotineiro, mas como movimentos que transpõem para algo mais, que fazem com que os envolvidos valorizem o que aprenderam e queiram fazer dela a sua experiência, o seu aprendizado. O aprendizado aqui está grávido de continuidade.

Originalmente a Festa nascida da devoção ao santo negro constitui a expressão de fé da comunidade cuiabana e mato-grossense negra, pobre e simples. Apesar dos preconceitos de raça e de classe operantes no Brasil, encontrei na Festa devotos brancos descendentes de portugueses, alemães, italianos, junto com a população negra e indígena, bem como membros da elite cuiabana festejando lado a lado com os socialmente excluídos. Todos celebram a devoção a um santo que não admitia racismo e discriminação, num mesmo tempo e num mesmo espaço.

Com olhares e contribuições de pesquisas diversas em torno da cultura brasileira e em especial de Mato Grosso, busquei entender como o povo cuiabano celebra durante todo o tempo a vida, preservando o tempo e o espaço da Festa e demarcando o espaço deste evento como distinto dos demais espaços da cidade. Utilizei a vertente fenomenológica de Merleau-Ponty (
1999) no que tange à noção de temporalidade. O conceito de educação emancipatória foi buscado em Paulo Freire (1997; 1999). Também recorri à etnografia realizada pela Profa. Maria de Lourdes De Lamônica Freire em Vila Bela da Santíssima Trindade (1988) e aos conceitos basilares de Rita Amaral (1996; 1998) sobre a festa e a significação do festejar no Brasil.

Aqui abro um parêntese ou outro veio de interlocução para dizer do "sobrevôo" necessário para pelas Irmandades, posto que a Festa de São Benedito estava nas mãos delas.

As Irmandades eram formadas por grupos de pessoas leigas, organizadas, que legalmente assumiam o cotidiano de vida das capelas, constituindo, de fato, o poder local religioso e social. Em Cuiabá, essas Irmandades foram responsáveis pela Igreja do Rosário e São Benedito, uma vez que os padres, à época nessa região, constituíam número pouco expressivo e a Igreja do Rosário não era considerada ainda Paróquia, mas, sim, uma capela de devoção.

Nas mãos das Irmandades de São Benedito toda a organização, arrecadação e festeiros da Festa se mantiveram até a década de 80, quando a paróquia, por meio de suas lideranças religiosas e leigas, movidas pelo florescimento de pastorais e movimentos sociais, como que toma a Festa do poder das Irmandades e passa a organizá-la e concretizá-la na Praça do Rosário. A partir de 1982, devotos, independentemente de sua posição e condição social, podiam ser rei ou rainha da Festa de São Benedito.

Ocorreu-me, com o andamento da pesquisa, o entendimento de que, para descrever ou simplesmente falar dessa festividade dos cuiabanos, eu precisava como que descer ao "chão" da Festa; colocar os pés nessa realidade com mais freqüência e auscultá-la sem pressa. Essa escuta resultou de um envolvimento maior com o objeto pesquisado e com a multidão dos devotos. Eu não era uma pessoa a mais; tornei-me um rosto conhecido e cuja presença logo alguém cobrava quando algum momento lembrava o santo..

Após um longo trajeto que também se expressava na compreensão da Festa e dos seus aspectos pedagógicos intencionais e espontâneos de aprendizado, a pesquisa concluiu que a educação aqui referida esteve e está presente de forma marcante nos processos que medeiam a Festa justamente porque ela celebra o que se vive; celebra a vida do ser humano, possui caráter ético, estético, político e constitui, ontologicamente, o ser humano convidado a se criar (autopoiésis) pelo chamado de estar a cada dia sendo. Portanto, não tem forma previamente definida, ou única, porque se move no e ao ritmo do tempo, como um quadro sem moldura, sem a inscrição de um(a) único(a) autor(a), mas com a inscrição de todos(as) os(as) autores(as). E no movimento da Festa, o aprendizado acontece.

As pessoas aprendem e ensinam no movimento da Festa. São trocas de saberes sobre o seu limite e o limite do outro, saber ouvir o diferente, acolher as experiências e o respeito pela tradição. Assim, também eu fui ensinada no aprendizado da Festa.Passei a aprender com ela, afinando-me, iniciando-me nela, sendo educada por ela, educada em minha sensibilidade, em meu acolhimento, em minha espiritualidade, em minha dimensão comunicativa e expressiva para a solidariedade e o trabalho conjunto. Olhando-a por dentro e ao seu avesso, lembrei-me de Carlos Rodrigues Brandão quandose refere à cultura do outro, o diferente de "mim", numa troca mútua de experiências, sem que um se sobreponha ao outro, mas que se comunique na cultura:

Festa São Benedito em Cuiabá, Mato Grosso, 2006 Foto: Dejacy Arruda Abreu

[...] é que o outro só se dá a compreender quando nós formos capazes de decifrá-lo a partir do seu próprio ponto de vista. Isto significa que devo ser capaz de, primeiro, pensar a cultura do outro, através dos termos com que ela se pensa a si própria para, depois, então, a partir daí, ser capaz de associar a compreensão de tal cultura, com base em seu próprio ponto de vista, a minha lógica. (1986, p. 9-17)

Sendo assim, a educação simplesmente acontece em qualquer espaço de vivência das muitas experiências humanas, como uma celebração de trocas simbólicas de signos e significados para um determinado grupo. E para esse grupo ela representa mais que a fala ou a escrita: ela provoca movimentos no corpo por inteiro, envolvendo-o de tal maneira que o conduz a se expressar, a comunicar o que a ele acontece. Por isso o corpo dança, canta, pinta, sorri, experimenta, se alimenta, chora, contrai-se, atrai, distrai-se, lança-se, abraça, silencia-se... O ser humano como que comunica a outro humano o que lhe acontece com palavras e na ausência delas.

Parece-me que, de certa forma, o cotidiano de nossas famílias, ruas, escolas, igrejas, clubes e outros tantos espaços permitem tecer relações de aprendizado nas quais a vida e as experiências se misturam. Seja num ambiente festivo informal, seja num formal, delineamos definições de identidades que nos identificam com o que acreditamos ou não, pelas quais lutamos ou não. O que estou buscando dizer é que a educação acontece primeiramente longe de um espaço fechado, demarcado, ensaiado e institucionalizado.

O direito ao exercício da cidadania foi uma categoria que permeou esta pesquisa. A Festa abriu fortemente a compreensão de um espaço social que suscitou nos devotos e envolvidos com o santo um processo de tomada de consciência da igualdade de todos perante a lei. O movimento social que é percebido e na preparação e nos dias da Festa revelou o avanço na compreensão do direito à cidadania que emergiu reiteradamente dentro da sociedade contemporânea cuiabana.

Marilena Chauí (
1984) afirma que a luta pela cidadania implica uma conquista social e política diferenciada, ampliando, assim, a análise sobre o tema no tocante à democracia, com o que concorda Maria Vitória Benevides (1994, p. 9) ao dizer que a cidadania ativa é aquela que institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas, essencialmente, criador de direitos para abrir novos espaços de participação política. Isso me levou a compreender que cidadania carrega ações de sentidos diversificados, pois ela emerge dos direitos e deveres de toda sociedade, reconhecendo a todos como iguais perante a lei, devendo possivelmente mover a sociedade para um processo de participação e compromisso social. Foi numarealidade de cansaço, de lutas e de resistências que a teimosia do povo cuiabano e mato-grossense encontrou espaços na Festa de São Benedito ou os criou para manifestar sua indignação e negação da ordem imposta. Esses espaços -seja o da Festa ou seja o da Praça do Rosário em si-, são lugares de fortalecimento da luta, de descarrego das tensões, do medo e de toda forma de poder que produz a morte.

Devoção em família Foto: Dejacy Arruda Abreu

Educação

A educação está presente na vida do ser humano, faz parte ontológica da sua natureza. Ela acontece de formas diversas, espontâneas e carregando, de alguma forma, intencionalidades. Como pondera Brandão (
1995, p. 7):

Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar.

A educação nesta pesquisa foi entendida como aquela que invade a vida e é aprendida através de concepções diferentes, em mundos e culturas diversas. Com isso afirmo que a educação não deve ser concebida deforma única, institucionalizada.

Observando a Festa e participando de sua pedagogia organizacional, entendo que a Educação na Festa e para além da Festa é a soma da tecedura de diferentes processos, podendo ser eles pessoais, interpessoais e outros que culminam na construção de “valores diversos”. Estes valores poderão ser válidos para um dado grupo de acordo com sua experiência, sem que haja um único grupo guardião do saber válido, pronto e acabado, pois a educação ou o conhecimento é a soma de experiências que podem ser válidas para um grupo, mas para o outro pode não ter o mesmo valor. Nessa experiência com o diferente, reconhece-se a importância da diversidade cultural. A educação, portanto, pode ser entendida como uma colcha de retalhos, formada por pedaços distintos, descolados de seu todo. Concordo com Brandão (
1995) quando diz que “[...] não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante”.

A Festa aqui estudada é entendida como instrumento educacional, dado que nela se constituem identidades, finalidades, processos, projetos, congregando a diversidade numa certa unidade precária que se encontra explicitada por suas formas e conteúdos que geram, sustentam e garantem a vida, a autonomia e a liberdade. Afirma o universal que somos e o singular de que nos fazemos. De alguma forma o povo que festeja une-se e se identifica com os elementos, símbolos ou espaços que a congregam. Há algo que os torna diferentes, únicos e por isso universais, enquanto humanidades concretas e empíricas.
Ribeiro (
1982, p. 44) evidencia que:
A festa como instrumento, representada pelo cotidiano, pelas famílias, pela experiência de vida, é uma escola, cujo sujeito pedagógico é o próprio povo, que orienta e revigora comportamentos, faz participar de crença e valores, perpetuando um universo simbólico.
A Festa da Igreja do Rosário e São Benedito não é exceção. Constitui uma via fundamental de produções sociossimbólicas que se entrelaçam em relações ressignificadas por teias de sentidos que possuem alguns arrimos e tessituras no transcendente. Tem sido expressão de negação, de alienação, de fuga do conformismo, da individualidade vazia, mas que se inspira na solidariedade, na luta de grandes projetos humanos e políticos.
O espaço da Igreja do Rosário e São Benedito onde acontece a Festa produziu e continua a produzir humanidades marcadas pelo desejo de democracia, de participação e de igualdade. Produziu humanidades solidárias, algumas delas nossas contemporâneas, as quais continuaram a ser inspiradoras da melhor humanidade, como as Padre Emílio, Padre Teodoro Weber, Padre Ten Cate, Vicente Cañas, mais recentemente Ari, Lourenço Fernandes, e muito recentemente Maria Benvinda e Eudson de Castro Ferreira
. Estas humanidades não nasceram da forma como viveram e se expressaram. Foram geradas no movimento de luta, de engajamento, provocado pelos conflitos e na resposta generosa a eles.
Neste estudo do aprendizado da Festa, foi possível entender que aquilo que não trazemos ao nascer e de que impostamente ou de livre arbítrio precisaremos quando adultos, é-nos dado pela educação situada numa dada cultura. Quando digo que a Festa de São Benedito educa é porque reconheço e identifico nela o que chamo aqui de educação socializadora, capaz de desenvolver valores de forma autônoma e pessoal e pôr chão na sensibilidade, significado nas relações, compaixão nos conflitos, sede de justiça diante da maldade, solidariedade na solidão. Estas são manifestações que somente podem ser compreendidas como ações formatadas pelas ações educativas que orientam as humanidades concretas no sentido da solidariedade, do acolhimento do outro/diferente: a organização solidária; a troca; a mútua ajuda; a tolerância nos conflitos; a afinação no timbre da Festa; a doação do trabalho para o santo; o compartilhamento da alegria, da fé e da humildade exigida por São Benedito aos fiéis; a caridade com os pobres; o compromisso ético-político cotidiano. O que estou dizendo é que educação é um processo inclusivo entrelaçado em dimensões decorrentes de processos sociais globais diversos, longe de centrar o seu sentido último em educação escolar institucionalizada que age, na maioria das vezes, como uma agência de controle, produção e reprodução utilizando mecanismos talvez inovadores ou conservadores que reproduzem orientações dos grupos que as instituem
. Esse pensamento e olhar interpretativo sobre Festa de São Benedito levaram-me a Durkheim (1955), trabalhado no livro Educação e Sociedade de Luiz Pereira e Marialice Foracchi (1976, p. 31), o qual me ajudou a compreender como a educação é concebida por esse autor em relação à sociedade: “Se a Educação deve ser sociologicamente analisada como processo social inclusivo, é legítimo conceber a sociedade como sendo, toda ela, uma situação educativa”. Sob a perspectiva durkheimiana, a educação é concebida como processo socializador, entendendo-se que uma geração se coloca no “tempo” histórico, social, político, econômico e cultural como mediadora da outra geração, considerada mais nova, ou como quer chamá-la Durkheim (1955), geração imatura, para com ela e nela concretizar ou inaugurar processos educacionais. Para tanto, é importante que os currículos escolares sejam adequados às peculiaridades de cada localidade e valorizem a cultura como seu patrimônio histórico, artístico, cultural e ambiental compreendida como tarefa paidêutica imprescindível.


Imagem de São Benedito no interior da nave central da Igreja Foto: Dejacy Arruda Abreu

Conclusão
Concluí que a Festa de São Benedito pode ser vista para além de um encontro espiritual, de confraternização popular, de consolidação de uma unidade indistinta e pacífica. Ela não é um mero espetáculo turístico religioso, folclorizado, que se mantém estático no tempo, emoldurada como num museu, como crítica Ortiz (
1991, p. 37) ao se referir aos folcloristas:
Os folcloristas criam museus de tradições populares com o intuito de ‘salvar’ os resquícios de uma época primeva. Mas, assim fazendo, eles se contentam em mirar ‘a beleza do morto’, pois seu objeto de estudo é o passado em vias de extinção.
Ela é fruto de uma trama em curso numa sociedade dividida em classes, com conflitos raciais vivos, com conflitos políticos expostos a nu. Ela está prenhe de vida. A Festa se constituiu, também, num espaço privilegiado que fecunda, cria, reitera e recria as tradições consolidando a raiz dos costumes do povo com os sentidos de suas vidas, mediada pela cuiabanidade e pelas necessidades e desejos postos à mesa pelo tempo. A Festa, circunscrita num espaço, recria a temporalidade ininterrupta, à medida que os devotos festejam o santo com seus familiares. O tempo flui, não há uma mera recordação do passado festivo, o canto, a dança, a oração, o santo e o lugar vão se constituindo como fontes simbólicas que emanam e recriam, de novo, a vivência de um tempo aberto continuado. Cada um experimenta o tempo a seu ritmo que se soma à experiência comum de todos(as). O tempo cronológico, medido, controlado, é abolido pela transcendência que se encarna em todos e em cada um(a).


Notas
Em Cuiabá chamavam-se conquistas às invasões de territórios ameríndios. As pessoas (in memoriam) nomeadas aqui foram e continuam sendo força emblemática da memória de luta, atuação e resistência da Igreja do Rosário e São Benedito. Dentre elas temos os padres jesuítas, o missionário jesuíta Vicente Cañas que foi assassinado na luta pela demarcação das terras indígenas em MT, ex-jesuítas, professor universitário, leigos comprometidos com as causas sociais e políticas em Mato Grosso. O grupo hipoteticamente pode ser uma instituição como a igreja, a escola, a família e outros
Webgrafia
SANTO DE DEVOÇÃO - São Benedito, o protetor da cidade. Cuiabá. Acesso em: 11 jun. 2006.

AMARAL, Rita.
Festa à Brasileira: sentidos do festejar no país que “não é sério”.

Bibliografia
AMARAL, Rita. Festa à Brasileira: sentidos do festejar no país que “não é sério”. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS/USP, São Paulo, 1998.
AMARAL, Rita. Cidade em Festa: o povo de santo (e outros povos) comemora na cidade. In: MAGNANI, J. G.; TORRES, Lilian de Lucca (Orgs.) Na Metrópole. São Paulo: EdUSP, 1996. (Textos de Antropologia Urbana).

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco: estudo antropológico de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BENEVIDES, Maria V. de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova. Revista de Cultura e política, São Paulo: Cedec, n. 33 especial sobre cidadania, 1994.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas: Mercados de Letras, 2002a.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002b.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Em campo aberto. São Paulo: Cortez, 1995. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação popular. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e persistência. Cultura e democracia. São Paulo: Editora Moderna, 1984.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Tradução Lourenço Filho. 4 ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1955.
FERREIRA, João Carlos. Mato Grosso e seus municípios. Cuiabá: Secretaria de Estado da Cultura, 1997.
FREIRE, P. Que fazer. Teoria e prática em educação popular. Petrópolis: Vozes, 1999. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução Fanny Weobel. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
GEERTZ, Clifford. O Saber local: Novos ensaios em Antropologia Interpretativa. Tradução Vera Mello. Petrópolis: Vozes, 1998.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2 ed. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade: a França no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1991.
PEREIRA, Luiz; FORACCHI, Marialice M. Educação e Sociedade. 7 ed. Companhia. São Paulo: Editorial Nacional ,1976.
RIBEIRO, J. J. C. N. A festa do povo: pedagogia de resistência. Petrópolis: Vozes, 1982.

Nenhum comentário:

Postar um comentário