terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Humor AM
Irreverência no ar
Por Odair de Morais*
“O difícil agora tem sido convencer o pessoal a deixar o CD aqui na rádio” Mortadela As possibilidades de gravar um álbum hoje em dia são bem maiores do que em outros tempos. Independente das qualidades musicais, basta ao candidato a artista se dirigir a uma das inúmeras gravadoras existentes e se mostrar disposto a pagar pelo serviço. Como sair do anonimato apenas não satisfaz a maioria, o passo seguinte é fazer a divulgação do CD – o que significa necessariamente bater à porta das rádios, embora a internet também se preste a esta finalidade. No entanto, em se tratando de um cantor desprovido de seus atributos essenciais como afinação, ritmo e, principalmente, recursos financeiros, é neste momento que as portas se fecham. Porém, nem mesmo isso pode ser considerado motivo para desespero daqueles que se encontram num beco sem saída, conforme declara o radialista Carlos Roberto, o Mortadela, apresentador há quase vinte anos do programa humorístico ‘A paradinha do Beco da Lama’, da Rádio Cultura de Cuiabá AM. “Na FM, o CD de um cantor sem qualidade, se não tiver jabá, não toca. Mas aqui no Beco toca.” Mortadela relata que o programa “A Paradinha do Beco” foi idealizado pelo professor William Gomes, em 1991, época em que fora produtor artístico da rádio. “Muito criativo, ele nos deu a ideia e nós abraçamos. Foi uma brincadeira que acabou dando certo. O pessoal gosta mesmo de cachorrada.” A paradinha, como o próprio nome sugere, faz referência às “Paradas de sucesso” das rádios, programas nos quais uma lista de músicas mais pedidas pelos ouvintes é apresentada. O Beco da Lama, obviamente, é uma tradicional rua do bairro do Porto, em Cuiabá, famosa por seus bares onde funciona o baixo meretrício. Sendo assim, o diminutivo mais o local que serve de amostra para a pesquisa estabelecem toda a comicidade de uma parada musical às avessas. Na Paradinha do Beco só tocam as piores. A princípio, explica Mortadela, A paradinha estava restrita ao Beco da Lama. No entanto, “com o passar do tempo, o pessoal começou a ligar pra cá e a pedir: - Põe o nosso boteco no roteiro de pesquisa do Dito Jacaré. E a coisa se estendeu pela cidade. O que tem de pé-inchado por aí não é brincadeira.” A entrada do locutor na abertura do programa é, sem dúvida alguma, digna de nota: “Está no ar mais uma paradinha do Beco. Pesquisa do Dito Jacaré nos bares Brotinho, Mané Pretinho, Pedra Branca, Bar da Gorda, Sampaio Galo Verde, na Morada do Ouro. Tijucal: Bar do Bugrinho, Bar da Vanda e Carlinhos Quebra-mola. No Jardim Kennedy: Bar do Quelé. No Dom Aquino: Bar do Dito Pinga e Palmiro Espera-pato. No CPA IV: Bar do JK, Jair Bala e Getúlio Sinuquinha, na avenida Curió. No Cophamil: Bar do Chifrudo e Boca Mardita (sic). Na baixada da égua, entrada pro Cristo Rei, tem o Corno’s Bar. E aqui na avenida São Joaquim, Bar do Prado, malhador de Pé-fofo, o maior número de pé-inchado por metro quadrado do Centro-Oeste brasileiro.” Antes de Mortadela destacar as indicações da tarde, um certo João Pacífico faz as “Orações do Pé-fofo”, paródias do Pai Nosso e do Credo (ver quadro). Assim ungidos, enfim as cinco mais tocadas nos botecos da cidade podem ser reveladas. Até porque, “no dia em que a gente não faz A Paradinha do Beco, o pessoal liga pra cá e reclama”, diz Mortadela. “Já nos sugeriram até que gravássemos um CD com essas músicas. Acredita?” Com humor, o programa resgata diversos vocábulos do linguajar cuiabano e o antigo hábito de atribuir apelidos caricatos. Ironia destilada Conforme Mortadela, este ano foi escolhido o Portão-do-Inferno como local onde serão feitos os lançamentos d’As Mais Pedidas da Paradinha do Beco. Aos ouvintes de outras regiões do estado, explica que “o Portão-do-Inferno é um precipício que há em Chapada dos Guimarães. Tem uns oitenta metros mais ou menos de altura. Então, fica bem lançado de lá.” O ponto alto do programa, como é possível perceber, está nos comentários que Mortadela tece a respeito dos cantores e das músicas tocadas: “Essa música foi gravada pelo Creedence, na década de setenta. Eudes Adriany ouviu, achou que não estava boa e que podia fazer melhor. Confira aí como é que ficou. Have you ever seen the rain, na versão dele virou Encontrar um outro alguém. Solta.” As vinhetas fazem súbitas intervenções durante a execução das músicas. Relinchos, cachorros latindo, descargas, tiros, gargalhadas e, até mesmo, resmungos sobrepõe-se à voz dos cantores. Músicas jocosas e paródias são apresentadas com ironia no programa. “Se você tem cachorro em casa, compra este CD. Você põe pra tocar perto do cachorro, não fica uma pulga, rapaz. Vazam na hora.” Na programação, costumam aparecer os mais diferentes estilos musicais: Forró, Lambadão, Sertanejo e Inclassificáveis. Desafinados e arrítmicos, os cantores deslizam nas letras, pronunciam incorretamente, entram em descompasso com a harmonia como em um verdadeiro show de calouros. Mortadela revela que nem sempre os cantores aprovam a indicação de suas músicas para o Prêmio Latino do Beco da Lama, paródia do Grammy Latino que premia anualmente os melhores cantores da América Latina. Cita, como exemplo, o caso do Zé Moreno, barbeiro, com salão em Várzea Grande, que a princípio gostava de ouvir suas canções sendo tocadas na rádio. Até que “deram um alô pra ele: ‘Esse negócio que o Mortadela está fazendo aí, está tirando sarro de você’”, conta o radialista. “Certa vez, eu estava fazendo o cabelo lá, e o Zé Moreno com a navalha aqui no meu pescoço: ‘Pois é, Mortadela [imitando, com voz fanha]. A gente gravando CD, vendi minha bicicleta, umas galinha (sic) e um terreno que eu tinha... E ocê lá fazendo caçoada, né?’ O Zé dizia isso com aquela navalhona no meu pescoço. Falei vôte! Passei apurado com essa história.” Segundo Toninho, sonoplasta da Rádio Cultura, Zé Moreno faz a barba dos fregueses com uma navalha cega. “De vez em quando, ele dá um copo de água pro cara beber. Pra ver se não furou”, brinca. A equipe do DC Ilustrado foi recebida no estúdio da Rádio Cultura e assistiu ao vivo à gravação do primeiro programa do ano. Divulgamos a seguir a lista das músicas que figuraram entre as mais tocadas do dia. No quinto lugar: Trio Rojão Pesado (Demimoso, Demirante e Demiroso) com “O errado sou eu”. No quarto lugar: Eli Tchorêro, com a música “Briguei com ela”, sucesso dos anos 60. No terceiro lugar: Rodrigues do Bela Vista, com “Ela é sapatão”. No segundo lugar: Augusto Soares. “O chupador”. “Viu que interpretação?”, me pergunta o Mortadela. “Chega a chorar o Augusto Soares. Como diz o outro, não dá assistência, pé-de-pano aparece e cram!” E no primeiríssimo lugar: Denner Silva, grande talento, inclusive com vídeo no youtube. “O que sinto drento (sic) de mim”. Após a entrega do Prêmio Latino (ouve-se um cachorro latindo toda vez que é pronunciado o nome do prêmio), Mortadela ralha: “Vai deitar, Duque. E não solta pelo aí. Amanhã cê volta...” Como ele mesmo diz, chega de cachorrada por hoje.
* Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado professor_odair@hotmail.com
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Jingle no qual o programa divulga uma suposta “balada” no bairro do Porto.
BECO DA LAMA, a festa. Venha curtir esta super balada com animação dos DJs Dudu Pé-fofo, Goiano Pinga-pura e Boneca. Corote na faixa a noite toda pra refrescar o fervo. Os melhores do Brasil: Raimundo Soldado, Denner Silva, Tião de Minas, Ditinho do Pistão, Zeno Silva, Os Ciborgs do Som... Reserve já a sua trincheira. Cobertura dos programas Ronda Policial, Cadeia neles e Olho Vivo.
Pai-nosso do cachaceiro
Santa cana que estais na roça
Purificado seja o vosso nome
Venha a nós o vosso líquido
Aguardente sem mistura
Pra ser bebido à nossa vontade
Assim no boteco como em qualquer lugar
Cinco litros por cada dia nos daí hoje
Perdoai o dia que bebemos menos
Assim como nós perdoamos o mal que nos faz
Livrai de ficar atordoado e da rádio patrulha Amém!
Pode beber que não faz mal pra ninguém.
Credo do cachaceiro
Creio na subtilidade do gole
Tudo produto da cana e da caninha
Creio na aguardente que é o nosso alimento
Qual foi concebido pelo aperto da moenda
Foi derramado ao cocho ao terceiro dia
Ressurgiu da garrafa Subiu ao céu da boca dos cachaceiros pau-dágua
E no tonel bem arrolhado Donde há de vir a alegrar os grandes e os pequenos
Creio no espírito de 40 graus Na santa safra do mel
Na comunicação dos impostos
Na remissão sem pena
E na ressaca de tudo nós Amém!
Pode beber também que não faz mal pra ninguém.

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