domingo, 21 de fevereiro de 2010

CRÔNICA
O canto da sereia e a luta de Osvaldão
Odair de Morais*
Especial para o Diário de Cuiabá

Primeiro apareceu a Yara. Bem moça e bem gentil, com seus cabelos pretíssimos e escorridos pelas espáduas. Yara, Iara ou Uiara que na língua tupi significa a “sedutora das águas”. A exibir-se naquele bairro de beira de rio, Yara prometia arrastar-nos todos à perdição. O bairro Alameda, onde passei a maior parte de minha infância, tradicionalmente sempre foi um lugarejo isolado do restante de Várzea Grande. Aquele bairro monótono, onde dificilmente algo de extraordinário acontecia, tinha como característica o fato de a maioria de seus moradores possuir algum grau de parentesco entre si. Quando não eram unidos por laços consanguíneos, eram, no mínimo, ligados pelo batismo. No começo da década de 90 ainda era assim. Os rapazes andavam afoitos. Imagina os perrengues que a gente passava pra conseguir uma garota com a qual os nossos desejos mais ocultos enfim pudessem se realizar. Tão logo se mudou praquele lugar, Yara alugou uma quitinete e montou um salão de beleza, o primeiro a se instalar naqueles grotões. Mãe solteira, morava no fundo do salão com o filho. O preço cobrado pelo corte de cabelo era um pouco mais alto do que os da concorrência. Que, por sinal, ficavam muito distantes. Mas compensava. Naquela época, muitos de nós só frequentavam as mesmas barbearias que o pai. Era preciso ter um barbeiro de confiança, pois, alegava-se que caso este não tivesse “a mão boa”, corria-se o risco de o cabelo engrenhar irreparavelmente. (Isso quando cortávamos o cabelo, pois também era natural que andássemos que nem urso.) Yara talvez não tivesse as mãos boas para o corte, mas possuía outros atributos que com certeza passaram a chamar a atenção da rapaziada. Como era baixinha, ao dar um trato em nosso visual, às vezes ela precisava se aproximar bastante. Quase se debruçava sobre nós. Enquanto ela fazia o serviço, dando uma de migué os meninos deixavam o cotovelo estrategicamente posicionado. Não sei quem foi o primeiro a ter a agradável experiência, mas sei de muita gente que passou a cortar o cabelo lá em razão disso. Yara era a sereia do lugar a sussurrar prazeres dionisíacos em nossos ouvidos. “Como você vai querer o corte?” Eu estava detraído, sua voz me trazia de viagens que fariam inveja à Ulisses. Eis que senão quando surge no bairro um musculoso mancebo chamado Osvaldão. Misto de segurança de boate e beque central de fazenda. Pelo vigor físico, impunha medo a quem se aproximava. Mas era terno a ponto de um simples sorriso desmanchar toda e qualquer impressão inicial. Passa, portanto, também a fazer parte desta história. Principalmente da história de Yara, pois tão logo se instalou no bairro, passaram a viver juntos. Parece que a partir de então o pessoal deixou de ir com tanta frequencia ao salão dela. Quem é que iria arriscar ser nocauteado por ele? Osvaldo tinha uns dois metros de altura. Era negro. Gostava de caminhar sem camisa pelo bairro, o peitoral saliente. Exibicionista até os ossos, fazia exercícios na avenida. Limboso, o nego até lomeava, como o pessoal costumava dizer. Na época não era muito difundido entre nós o uso de anabolizantes. A gente se impressionava mesmo quando um sujeito alcançava um vigor físico inigualável para os métodos convencionais. Viemos a saber depois que Osvaldo treinava em uma academia e praticava boxe. Amava o que fazia. Demonstrava aos meninos como eram os treinamentos. Admirávamos, lógico. Tinha tanto paixão pelo esporte que passou a difundi-lo entre a molecada. Me lembro que na época havia um jogo, uma espécie de bocha, que rapidamente perdeu um sem número de adeptos. Pouco tempo depois o pessoal andava tão envolvido com a coisa que algumas lutas eram logo marcadas para o final de semana. Trocaram a bocha pelo boxe. Num bairro sem lazer, em que tradicionalmente nada acontecia, o povo se mobilizou. O lance começou a crescer. Andavam em voga, por exemplo, os filmes do Stallone, como o Rocky Balboa, outra explicação para o envolvimento imediato da comunidade. Inimigos não faltavam. Passou-se a escolher os adversários a partir de desavenças antigas. Agora, elas eram resolvidas no ringue improvisado a beira da estrada, onde palha de arroz servia de tablado. Depois de suados aquilo começava a grudar no corpo. Quando os lutadores caíam, por vezes engoliam um bocado daquilo. Todos riam do infeliz que, sem poder utilizar as mãos por causa das luvas, se via ainda mais impossibilitado de retirar a incômoda casca de arroz da boca. Algum tempo depois o salão fechou. Ficamos sem duas atrações no bairro. Yara seguiu rumo à novas praias, deixando o Osvaldo sozinho na quitinete. Me informaram que ele se candidatou recentemente a um cargo político. Pelo que fiquei sabendo esteve muito distante de conseguir o número suficiente de votos para eleger-se. No entanto, aquele homem humilde e determinado em sua simplicidade já havia feito muito em prol daquele bairro. Muito mais do que qualquer político bem intencionado tenha sequer pensado em fazer. Talvez Oswaldo não merecesse ser eleito, devido à inaptidão para o cargo. E mesmo, após eleito, talvez não soubesse o que fazer na câmara. Mas ele já fizera muito – ainda isento de intenções políticas. O que, amigos, convenhamos, é muito mais louvável.

*Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado professor_odair@hotmail.com

Um comentário:

  1. Olá professor. Sou estudante da UFMT e estudo para concursos. Gostaria de assistir à uma vídeo-aula sobre o período republicano de Mato Grosso, pois, tenho dificuldades. Gostaria também de obter mais informações sobre o episódio "Reposição da Legalidade" e "O Massacre da Baía do Garcez".
    Grata,
    Luana.

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