sábado, 13 de março de 2010

CRÔNICA
O malabares



Diante do farol, vejo que o malabarista fez da faixa de pedestre o seu picadeiro improvisado. (Certa vez um conhecido quis repetir um truque que vira num farol na cidade em que morava, e desastradamente acabou engolindo um bocado de álcool.) Atira pro alto suas coloridas clavas no intuito de que sejam vistas pelo maior número de condutores. Recém libertas do alçapão, elas giram suaves e obedientes aos lentos e repetitivos movimentos do andrajoso mago do farol. Na falta de um traje convencional, ele resolveu cobrir-se de trapos. É a beleza gratuita do sinal semafórico. E representa agora na capital do estado o declínio, a falência e a queda do circo. Me fez lembrar de uma matéria que li, tempos atrás, sobre os decrépitos leões abandonados nas estradas pelos impassíveis donos de circo.
Enquanto o malabares se apresenta, imagino ouvir os divertidos acordes de uma orquestra circense. Ele aparenta entusiasmo. Ainda que alguma coisa venha a dar errado, ele sabe como agir. Tem tudo sob o controle. Gargalhará como um legítimo palhaço, e recomeçará sem o menor constrangimento.
Sob a velha cartola, seus cabelos estão em completo desalinho e empapados de suor. Circo do céu ou do sol escaldante?, me pergunto. Atravessamos o deserto do Saara, em pleno carnaval. No cruzamento das avenidas Mato Grosso com a Tenente Coronel Duarte, com extrema agilidade e destreza, o maestro mal-ajambrado sincroniza os objetos que atira pro ar de instante a instante. Grudou um sorriso na cara, bem embaixo do nariz de palhaço. Exagerado como a própria maquiagem.
Misero mago malabarista mal-ajambrado, como pode saber o momento exato de interromper as acrobacias? Rufam-se os tambores! A qualquer momento, o sinal vai se abrir. Ele se apressa. Tenta, a qualquer preço, sensibilizar os motoristas. Caminha agora com humildade entre o desprezo de uns e a caridade de poucos. Todo encanto e magia desapareceram subitamente de seu magro semblante. Acaba de incorporar um pedinte humilhado. Não tivesse visto o seu desempenho, acreditaria que fosse um qualquer com a mão estendida rente ao vidro que o separa de seu respeitável público...
Desce uma escura lona sobre sua alma circense.
O sinal fica verde novamente.
O circo improvisado é desfeito às pressas. Seu rosto foi de lívido a trágico em menos sessenta segundos. Sua maquiagem, neste momento, lembra uma antiga máscara grega. Corre pra calçada. Tudo o que ele menos quer é ser atropelado. Se pudéssemos nos aproximar um pouco mais, num close poderíamos perceber todos os tiques que ele apresenta. Inclusive, acompanharíamos o rastro úmido que uma translúcida gota vai deixando para trás ao escorrer agora pela sua carranca ressecada. Junto à faixa de pedestres, diante do farol, ele se prepara.
Corta o fluxo de automóveis, feito um novo Moisés.

Odair de Morais é escritor, acadêmico de Comunicação Social na UFMT, e colabora com o DC Ilustrado.
professor_odair@hotmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário