sábado, 10 de abril de 2010

Antes de tudo, a música, como diria o poeta

Odair de Morais*
Especial para o Diário de Cuiabá


Chegava de forma ignorada. Ninguém podia afirmar de onde, nem para onde partia. Costumava aparecer no sábado à noite carregando uma pesada mala de viagem. Havia quem dissesse que ali dentro ele carregava todas as suas coisas. Mistérios. Como tinha livre acesso, chegava como um funcionário e dirigia-se diretamente para o interior do estabelecimento – de onde retornava apenas depois de longos trinta minutos. Havia quem afirmasse por isso que fora contratado pelo dono do bar. Chamava-se Juquinha e era dançarino. Um misto de Rick Martin e Michael Jackson – tirante as insinuações a respeito da opção sexual, que não obstante, também existiam. Era de pouquíssimas, raras palavras. Por este motivo havia quem comentasse que ele gaguejava. O fato é que Juquinha era sinal de casa cheia. Famílias inteiras eram arrastadas pra diante do bar, quando ele se apresentava. Também: o cara tinha coreografia própria. E misturava passos de dance, break, e, não raro, de capoeira durante as apresentações. Até música da Xuxa ele chegou a dançar pra alegrar a molecada. Era um tanto egocêntrico (assim como este cronista que de vez em quando prefere fazer suas abluções neste espaço, e, preferencialmente, aos domingos). Foi em 1989, no bairro Alameda. Me lembro que na época fazia muito sucesso uma versão da música Volare do italiano Domenico Modugno... Juquinha dançando era de tirar o fôlego. Ele voava. Pouco tempo atrás, conheci um sujeito ainda mais afeiçoado à música do que o nosso dançarino, embora menos extravagante. Seu nome era Paulo. Há dez anos, eu trabalhava em uma livraria no Centro de Cuiabá e, ao deixar a loja, costumava parar em um bar no calçadão da Antônia Maria para tomar uma gelada, antes de enfrentar o lotação que seguia até torto para Várzea Grande. Me acompanhava sempre um funcionário da loja chamado Fernando. Hoje os videokês caíram em desuso, mas, há alguns anos, eram raros os bares que não os exibissem logo à entrada. Paulo chegava, cumprimentava a todos. Politicamente. Era motorista de ônibus, conforme nos contara, e fazia longas viagens pelo interior de Mato Grosso. Com o microfone na mão, entretanto, ele se realizava. Interpretava canções dos Beatles e da última fase do John Lennon. Gostava, sobretudo, das canções do Elvis Presley – mesmo lhe sendo completamente estranho o idioma. Aprendera intuitivamente a pronúncia. Algo inusitado, mas não uma exceção. Fernando zombava dizendo que decerto Paulo percorria a cidade inteira parando nos bares em que houvesse uma máquina funcionando. Pois ele realmente tinha a necessidade do aplauso. Às vezes, ao ouvi-lo cantar, alguém lhe oferecia uma garrafa de cerveja. Amigavelmente, ele recusava, alegando que se tomasse prejudicaria a própria voz. E deixava claro: seria absolutamente grato, caso, em vez da cerveja, lhe comprassem outra ficha. Sentiria-se então recompensado. Certa vez, ao se aproximar de nossa mesa, perguntei qual era o significado de Let it be, canção que acabara de interpretar. E ele: Pra ser sincero, cara, não faço ideia. Com um leve toque em seu ombro, eu disse: Deixa estar, amigo. Deixa estar. E lhe entreguei uma nova ficha. Aturdido, ele me olhou nos olhos e disse, ainda sem compreender: Deixa estar. E se afastou. No instante seguinte, Paulo já se dobrava ao meio, cantando: “Yes, I'm the great pretender”. Nessa hora eu sempre me lembrava dos versos de Drummond e pensava: Putz!, mas essa música, essa lua e esse conhaque botam mesmo a gente comovido como o diabo.




Nota: O título desta crônica faz referência ao poeta simbolista francês Paul Valery, que em seus poemas primava sobretudo pela musicalidade dos versos.




*Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado (professor_odair@hotmail.com)

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