sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Pedaços da escravidãoPeças descobertas em pesquisas arqueológicas no Mato Grosso revelam a diversidade cultural dos cativos

Luís Cláudio Pereira Symanski

O município de Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, já é conhecido por suas dezenas de sítios arqueológicos. Mas escavações feitas de 1999 a 2001 em três engenhos de cana-de-açúcar trouxeram informações preciosas sobre o cotidiano dos escravos da região. Fragmentos de cerâmicas, louças, vidros e metais descobertos por arqueólogos na área do atual reservatório da Usina Hidrelétrica de Energia Manso fornecem pistas das práticas culturais, identidades e crenças desses indivíduos. As decorações dos vasilhames cerâmicos, por exemplo, indicam que as visões de mundo de origem africana foram mantidas pelos escravos nesses locais.

Os engenhos Rio da Casca, Água Fria e Quilombo, ocupados entre os séculos XVIII e XIX, revelaram uma grande quantidade de cerâmicas artesanais, predominando panelas, tigelas, potes e pratos. Louças europeias de baixo custo também foram encontradas, além de garrafas de vidro.

Pesquisas como essas têm sido feitas sistematicamente nos últimos quarenta anos nos Estados Unidos, onde há uma intensa discussão sobre a identidade dos produtores das cerâmicas artesanais. Muitos artefatos encontrados em sítios ocupados por escravos teriam sido confeccionados pelos próprios cativos ou por índios da região, mas também podem ser produto das trocas culturais com os europeus. Essa polêmica se deve à pouca similaridade entre as tradições ceramistas ricamente decoradas da África Ocidental e as cerâmicas norte-americanas, que apresentam formas simples e sem decoração.

Mas nos engenhos de Chapada a decoração é muito comum, estando presente em mais de um quarto das amostras cerâmicas. Muitas dessas peças são decoradas com motivos bastante similares àqueles dos artefatos do período pré-colonial tardio e do período colonial da África Subsaariana (a partir do século XVI), o que indica a influência de grupos africanos específicos sobre esse material.

As cerâmicas são decoradas com motivos bastante similares aos que os ovimbundus de Benguela aplicam em ornamentos e nas tatuagens

O trabalho com fontes escritas também ajuda a recriar este panorama. Pesquisas em listagens de escravos presentes nos inventários dos senhores de escravos demonstra que os africanos compunham uma parcela que variava de 40% a 60% no período entre 1790 e 1870. Já entre 1870 e 1888, os afro-brasileiros dominaram demograficamente, constituindo 80% - aumento provavelmente provocado pela proibição do tráfico de escravos, efetivado a partir de 1850. A existência de engenhos em Mato Grosso está relacionada à decadência da mineração do ouro na região, no final do século XVIII. Muitoso dos senhores de escravos foram forçados a remanejar seus plantéis para outras atividades produtivas, como o cultivo e o processamento de cana-de-açúcar. A Chapada dos Guimarães se tornou, nessa época, o principal pólo agrícola da capitania, por apresentar terras férteis e se localizar perto de Cuiabá, um dos maiores núcleos urbanos desse território.

Na maioria dos engenhos, o número de escravos variava entre vinte e cinquenta, mas cerca de um terço desses estabelecimentos mantinha plantéis que podiam chegar a ter cem escravos. A maioria trabalhava em atividades agrícolas, mas alguns eram pedreiros, marceneiros, ferreiros e tropeiros. Eles viviam em pequenas senzalas, construídas de pau a pique com cobertura de folhas de palmeira de babaçu. Alguns desses alojamentos eram provavelmente destinados a famílias nucleares - um casal com seus filhos - pois era comum o casamento de escravos na região.

Benguela, Mina, Congo e Moçambique foram os grupos de procedência africana, as chamadas nações, majoritários na região em diferentes intervalos entre 1790 e 1870. Mina constituía um rótulo genérico, que poderia se referir a qualquer escravo embarcado no Golfo de Benim, então chamado de Costa da Mina. Em Mato Grosso, esses escravos eram principalmente nagôs (povos de língua iorubá) e gegês (povos de língua gbe). Chamavam-se benguelas, localizado no sul de Angola. Em sua maioria, eram nativos daquela região, sobretudo do planalto ocupado por povos agricultores conhecidos no século XIX como ovimbundus. Congo se referia aos bakongos do norte de Angola e do sul da República Democrática do Congo, bem como a outros grupos étnicos comercializados na bacia do Zaire. Por fim, moçambiques eram aqueles que tinham embarcado no porto da ilha de Moçambique, na costa oriental da África.

Enquanto os escravos minas predominaram entre 1790 e 1810, os benguelas foram o grupo majoritário entre 1810 e 1850. O número de escravos congos aumentou significativamente a partir de 1830, e eles se tornaram predominates entre 1850 e 1870, seguidos, então, pelos moçambiques.


fonte: www.revistadehistoria.com.br


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