sexta-feira, 10 de junho de 2011

Expedição Langsdorff

A viagem louca do barão

Langsdorff, o nobre alemão que liderou a mais célebre expedição
ao Brasil do século XIX, tem sua aventura recontada numa mostra


Marcelo Marthe

Arquivo Academia de Ciências São Petersburgo 2010
LUGAR ESTRANHO
Aquarela de Taunay retrata as palmeiras buritis do cerrado de Mato Grosso: jornada de 17 000 quilômetros que acabou em tragédia




"Se Deus quiser, prosseguiremos viagem hoje. As provisões estão acabando, mas ainda temos pólvora e chumbo", escreveu o barão Georg Heinrich von Langsdorff em seu diário, no dia 20 de maio de 1828. O médico, naturalista e aventureiro alemão era comandante de uma expedição científica financiada pelo império russo para investigar a fauna, a flora e a geografia do Brasil, nação que havia pouco declarara sua independência de Portugal. Naquela altura, o grupo acampava às margens do Rio Juruena, em Mato Grosso. Tais anotações, contudo, seriam o derradeiro rasgo de lucidez do líder. Depois de delirar na selva por semanas em decorrência de uma febre tropical, o barão perdeu a razão de vez. A Expedição Langsdorff passou à história como uma empreitada tão ousada quanto trágica. Iniciada em 1821 e encerrada oito anos mais tarde, percorreu 17 000 quilômetros. Depois de excursões pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais, seus integrantes embrenharam-se por São Paulo e de lá, em canoas e no lombo de burros, prosseguiram até a Amazônia. A mostra Expedição Langsdorff, que abre nesta terça-feira na sede paulistana do Centro Cultural Banco do Brasil (e passará por Brasília, em maio, e pelo Rio, em agosto), reúne 156 desenhos, pinturas e mapas produzidos pela comitiva do barão. O acervo pertence a instituições russas - e é, em sua maior parte, inédito no país.

A Expedição Langsdorff foi o evento mais ambicioso num período de ouro para os estudos estrangeiros no Brasil, inaugurado com a chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, em 1808. "As expedições permitiram um avanço significativo no conhecimento sobre o país e na projeção de sua imagem no exterior", diz a historiadora Lilia Schwarcz. Langsdorff convenceu o czar Alexandre I a investir na aventura o equivalente a 10 milhões de dólares atuais. A Rússia buscava então ombrear com as demais potências europeias em conhecimento científico - e o Brasil era para onde os olhos dos naturalistas se voltavam. O barão reuniu uma trinca de artistas estupendos - o alemão Johann Moritz Rugendas e os franceses Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence. Eles fizeram representações de paisagens, bichos, plantas e tipos humanos que impressionam tanto pela beleza quanto pelo rigor descritivo. Langsdorff trouxe ainda um astrônomo e cartógrafo, o militar russo Néster Rubtsov. A série de 28 mapas produzida por este último é exibida no Brasil pela primeira vez. Rubtsov fez plantas do Porto de Santos e de cidades como Cuiabá.

Ao contrário de outras expedições do período, a de Langsdorff não teve os resultados divulgados em seu tempo. Com o cérebro afetado pela doença, Langsdorff, de volta à Europa, nem sequer se lembrava de um dia ter estado no Brasil - quanto mais do material que coletou. Navios despacharam amostras de vegetais, bichos empalhados e pinturas para São Petersburgo, mas essas relíquias foram esquecidas num porão por um século. Em 1930, uma devassa stalinista em arquivos acadêmicos levou à sua redescoberta. A Guerra Fria fez com que o material permanecesse longe dos olhos brasileiros ainda por décadas. Só no fim dos anos 80 se realizou a primeira exibição de parte dele no país.

Langsdorff não suportava a insolência dos artistas - e a antipatia era recíproca. Depois de xingá-lo de "cachorro", Rugendas foi demitido e levou embora 500 pinturas feitas para a expedição. Filho de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), outro famoso pintor viajante, Aimé-Adrien Taunay escrevia ao pai, então estabelecido no Rio, para reclamar dos destemperos do chefe da expedição. Em 1828, o artista teimou em atravessar a cavalo o Rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia, com 400 metros de largura. Morreu afogado. A família culpou Langsdorff. Anos depois, um sobrinho do pintor, Alfredo d’Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay (1843-1899), cuidaria de espalhar que o barão era um monstro. "O naturalista insano de seu romanceInocência é clara referência a Langsdorff", diz o curador russo Boris Komissarov.

MATA E CIDADE
O sagui-da-serra (à esq.), por Rugendas, e a representação de trajes femininos
de São Paulo, de Taunay: artistas estupendos, mas temperamentais

É uma imagem injusta. Langsdorff foi um empreendedor e entusiasta do Brasil. Antes da expedição, adquiriu uma fazenda no Rio de Janeiro, na qual estabeleceu um núcleo de imigrantes alemães e investiu em inovações na agricultura. Primeiro cônsul da Rússia no país, era amigo de um político ilustrado e influente como José Bonifácio de Andrada e Silva. Depois da perda da razão, Langsdorff voltou para a Europa - e lá viveria por mais 22 anos, até a morte, em 1852. Assim como Florence, que se fixou no Brasil e desenvolveu no país suas experiências precursoras com a fotografia, o barão também deixou seu DNA aqui. O especialista Francisco Albuquerque contabilizou, a partir dos herdeiros de um filho legítimo do barão, um total de 1 500 descendentes. Entre os que estão vivos hoje, quem diria, há um nome famoso: a modelo Luma de Oliveira.

http://veja.abril.com.br/240210/viagem-louca-barao-p-102.shtml

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