A viagem louca do barãoLangsdorff, o nobre alemão que liderou a mais célebre expedição |
Arquivo Academia de Ciências São Petersburgo 2010 |
LUGAR ESTRANHO Aquarela de Taunay retrata as palmeiras buritis do cerrado de Mato Grosso: jornada de 17 000 quilômetros que acabou em tragédia |
"Se Deus quiser, prosseguiremos viagem hoje. As provisões estão acabando, mas ainda temos pólvora e chumbo", escreveu o barão Georg Heinrich von Langsdorff em seu diário, no dia 20 de maio de 1828. O médico, naturalista e aventureiro alemão era comandante de uma expedição científica financiada pelo império russo para investigar a fauna, a flora e a geografia do Brasil, nação que havia pouco declarara sua independência de Portugal. Naquela altura, o grupo acampava às margens do Rio Juruena, em Mato Grosso. Tais anotações, contudo, seriam o derradeiro rasgo de lucidez do líder. Depois de delirar na selva por semanas em decorrência de uma febre tropical, o barão perdeu a razão de vez. A Expedição Langsdorff passou à história como uma empreitada tão ousada quanto trágica. Iniciada em 1821 e encerrada oito anos mais tarde, percorreu 17 000 quilômetros. Depois de excursões pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais, seus integrantes embrenharam-se por São Paulo e de lá, em canoas e no lombo de burros, prosseguiram até a Amazônia. A mostra Expedição Langsdorff, que abre nesta terça-feira na sede paulistana do Centro Cultural Banco do Brasil (e passará por Brasília, em maio, e pelo Rio, em agosto), reúne 156 desenhos, pinturas e mapas produzidos pela comitiva do barão. O acervo pertence a instituições russas - e é, em sua maior parte, inédito no país.
A Expedição Langsdorff foi o evento mais ambicioso num período de ouro para os estudos estrangeiros no Brasil, inaugurado com a chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, em 1808. "As expedições permitiram um avanço significativo no conhecimento sobre o país e na projeção de sua imagem no exterior", diz a historiadora Lilia Schwarcz. Langsdorff convenceu o czar Alexandre I a investir na aventura o equivalente a 10 milhões de dólares atuais. A Rússia buscava então ombrear com as demais potências europeias em conhecimento científico - e o Brasil era para onde os olhos dos naturalistas se voltavam. O barão reuniu uma trinca de artistas estupendos - o alemão Johann Moritz Rugendas e os franceses Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence. Eles fizeram representações de paisagens, bichos, plantas e tipos humanos que impressionam tanto pela beleza quanto pelo rigor descritivo. Langsdorff trouxe ainda um astrônomo e cartógrafo, o militar russo Néster Rubtsov. A série de 28 mapas produzida por este último é exibida no Brasil pela primeira vez. Rubtsov fez plantas do Porto de Santos e de cidades como Cuiabá.
Ao contrário de outras expedições do período, a de Langsdorff não teve os resultados divulgados em seu tempo. Com o cérebro afetado pela doença, Langsdorff, de volta à Europa, nem sequer se lembrava de um dia ter estado no Brasil - quanto mais do material que coletou. Navios despacharam amostras de vegetais, bichos empalhados e pinturas para São Petersburgo, mas essas relíquias foram esquecidas num porão por um século. Em 1930, uma devassa stalinista em arquivos acadêmicos levou à sua redescoberta. A Guerra Fria fez com que o material permanecesse longe dos olhos brasileiros ainda por décadas. Só no fim dos anos 80 se realizou a primeira exibição de parte dele no país. Langsdorff não suportava a insolência dos artistas - e a antipatia era recíproca. Depois de xingá-lo de "cachorro", Rugendas foi demitido e levou embora 500 pinturas feitas para a expedição. Filho de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), outro famoso pintor viajante, Aimé-Adrien Taunay escrevia ao pai, então estabelecido no Rio, para reclamar dos destemperos do chefe da expedição. Em 1828, o artista teimou em atravessar a cavalo o Rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia, com 400 metros de largura. Morreu afogado. A família culpou Langsdorff. Anos depois, um sobrinho do pintor, Alfredo d’Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay (1843-1899), cuidaria de espalhar que o barão era um monstro. "O naturalista insano de seu romanceInocência é clara referência a Langsdorff", diz o curador russo Boris Komissarov.
É uma imagem injusta. Langsdorff foi um empreendedor e entusiasta do Brasil. Antes da expedição, adquiriu uma fazenda no Rio de Janeiro, na qual estabeleceu um núcleo de imigrantes alemães e investiu em inovações na agricultura. Primeiro cônsul da Rússia no país, era amigo de um político ilustrado e influente como José Bonifácio de Andrada e Silva. Depois da perda da razão, Langsdorff voltou para a Europa - e lá viveria por mais 22 anos, até a morte, em 1852. Assim como Florence, que se fixou no Brasil e desenvolveu no país suas experiências precursoras com a fotografia, o barão também deixou seu DNA aqui. O especialista Francisco Albuquerque contabilizou, a partir dos herdeiros de um filho legítimo do barão, um total de 1 500 descendentes. Entre os que estão vivos hoje, quem diria, há um nome famoso: a modelo Luma de Oliveira. |
http://veja.abril.com.br/240210/viagem-louca-barao-p-102.shtml |
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