domingo, 29 de março de 2009

Caminhos e fronteiras, a grande obra de Sérgio Buarque de Holanda

Caminhos e fronteiras é uma história da gente paulista. Ou melhor, são histórias dos paulistas. O comentário aparentemente ocasional sobre os pés descalços dos bandeirantes vai se compondo com as considerações sobre o fabrico do calçado, a agrura das trilhas, a pisadura diferente do índio e do português, as particularidades topográficas e as impossibilidades de uso de cavalos, não sem passar pelas dores e prazeres do bicho-de-pé.
Num estilo historiográfico que não se deixa delimitar de antemã, mas busca acomodar-se a seu tema, ganham significado descrições que poderiam muito bem ser associadas à "história das mentalidades" e que, entrelaçadas a explicações de ordem estrutural, não se afastam da tessitura íntima do vivido. Os caminhos são percorridos em ritmo andarilho até desembocarem, já no século XIX, nas dificuldades enfrentadas pelos colonos europeus da lavoura cafeeira. Avessos à aculturação, distinguiam-se dos primeiros colonizadores, mais dóceis às imposições da terra e capazes de aprender com o índio as maneiras de sobreviver em um meio desconhecido.
Sérgio Buarque de Holanda discorre sobre outros tantos temas - a coleta de mel, a adequação das armas, as comidas, as doenças, as crenças, o impacto da mineração, as técnicas de cultivo e de tecelagem etc. - para configurar o lento processo pelo qual as "trilhas de antas" iniciais dos bandeirantes dão lugar às fronteiras que hoje delimitam nosso território. Neste processo, são atravessados e desfeitos limítes étnicos e culturais, criando um novo espaço social no qual o índio, ainda menos do que o negro, já não tem lugar, ao mesmo tempo em que subrai ao branco seu caráter de europeu.
Caminhos e fronteiras é obra histórica do mais estrito rigor metodológico e, raridade, escrita por um mestre da língua. A citação precisa das fontes é feita no tom ameno de quem apenas lembra o testemunho de outro; o encadeamento dos argumentos é suavizado tanto pela sutileza do raciocínio quanto pela escolha do vocabulário ora coloquial, ora arcaizante. Sérgio Buarque de Holanda, o historiador, faz não apenas história mas também excelente literatura.
Caminhos e fronteiras é a história da lenta ocupação territorial promovida pelos bandeirantes. História dos processos e procedimentos desta empresa, nela Sérgio Buarque de Holanda descreve técnicas e práticas cotidianas - de caça e coleta, de lavoura, de viagem, de vestimenta. Detendo-se em dados referentes à mentalidade dos paulistas, aponta a maneira específica como estes foram levados a amalgamar a experiência indígena a seus interesses específicos. Com isso, as vastas transformações ocorridas no país até o século XIX adquirem o contorno das coisas vividas. Caminhos e fronteiras está, como tantas outras obras do autor - Raízes do Brasil, Visão do paraíso, Monções -, entre o que de melhor já se produziu como história do Brasil.
E finalmente podemos visualizar melhor a sutileza polissêmica do belo título, pois o livro trata, ao mesmo tempo, das trilhas dos bandeirantes e das raias da Colônia, mas sobretudo das direções e limítes de nossa civilização.

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