terça-feira, 12 de janeiro de 2010

CRÔNICA

Comércio tradicional cuiabano
Por Odair de Morais*

Sem dúvida alguma, não se trata de um armazém. É muito pequeno. Tampouco chamaria o lugar de mercearia, conforme os seus atuais fregueses. Quando o frequento, sinto que visito o meu próprio passado. Por este motivo, pra mim, é um bolicho. Como dizia o cuiabano de décadas anteriores. Uma venda, na rua de minha casa. Há uma pesada balança sobre o velho balcão de madeira, cujas tábuas, ao que tudo indica, foram consertadas há no mínimo quinze anos. Estão muito gastas e agora envergam devido à sobrecarga. (Fazia algum tempo que eu não via uma balança como esta. Acreditava que tivessem caído em desuso. Seu dono, porém, me explica que elas são bastante utilizadas por feirantes... Faz um tempão que não vou à feira.) A disposição dos produtos pelo cômodo é igual à de outrora. Um saco de mandioca e outro de farinha encostados à parede. No alto, pencas de bananas presas por ganchos de açougue. Ainda que vendidas a preços reduzidos, apodrecem. Antigamente, em caso de ofensa, o insulto vinha por meio de metáfora: “bananinha de bolicho!” – expressão equivalente a ordinário, reles, vil, insignificante. Me lembro que, há vinte anos, a venda de Seu Marcelino já existia. Exatamente no mesmo lugar. Apenas suas paredes, que antes eram de madeira e hoje são de alvenaria, mudaram. Até mesmo os caras que passam a manhã inteira sentados num comprido banco na frente do bolicho bebendo pinga me parecem os mesmos. Entretanto, como se houvesse um código de ética no lugar, ainda que estejam embriagados, todos mantêm o respeito em relação às freguesas. Pra completar o anacronismo do ambiente, desde que amanhece, a trilha sonora segue gritando a programação de uma rádio local AM. A proliferação dos supermercados e dos produtos industriais vem extinguindo esse tipo de comércio tradicional. Hoje, é cada vez mais raro encontrá-lo pela cidade. Na minha opinião, o pequeno comércio, cuja descrição foi feita logo acima, resiste graças à simpatia do homem que o administra. Ainda de madrugada, Seu Marcelino, um sexagenário, vai ao Porto escolher as mais frescas frutas e verduras que serão vendidas nesta manhã que se inicia. Em torno de 7h, ele chega. O Fiat 147 quase não suporta o peso do que foi comprado. Antes de estacionar o carro, acelera seguidas vezes, sinalizando que passou na padaria e trouxe pão francês (pão de sal, como ele diz) quentinho. Imediatamente, começam a surgir, crianças e senhoras que vem comprar os ingredientes para o nutritivo café da manhã da família. Fiado. Marcelino vai anotando todas as dívidas num caderninho ensebado e sujo no interior da venda. O tratamento dispensado aos fregueses é familiar, apropriado, tendo em vista que ele os conhece bem: Eh Joaquim, você não vem aqui hoje? Tem que comprar melancia pras crianças, rapaz. É insistente sem ser inoportuno. Muitas vezes fui até lá buscar um saquinho de leite e voltei trazendo tomate, batata-doce, refrigerante. Tem rapadura de leite, abacate. Vai levar? Leva pra sua mãe, ela gosta. Acerta no final do mês. Apregoa como hábil negociante. A quem vai comprar cebolinha, ele não esquece de oferecer alface e coentro. Se o cliente ainda não está convencido, acrescenta: Você não vai fazer salada? Então. Vai precisar de tomate também. Enquanto nos supermercados é difícil encontrar um funcionário disposto a nos auxiliar, na venda do Seu Marcelino você tem tudo à mão e ainda recebe orientações sobre as propriedades benéficas e nutricionais dos produtos. O discurso segue entre jocoso e bem humorado: Ocê não sabia que cenoura faz bem pra vista? (Acho que o que me faz bem é ouvir este seu modo característico de se expressar, idêntico ao do meu falecido pai.) O velho conserva outras excentricidades como usar chapéu e fumar cigarro de palha. Outro dia, eu nem havia me levantado ainda, o ouvi cantar a todo pulmões pela manhã. Abordei o assunto quando lá estive. Ele me respondeu então que aquela cantoria toda era pra espantar os fantasmas. O barracão permanecia completamente às escuras, mas vi que ele falava sério e tratei logo de mudar de assunto, como convém em situações embaraçosas. Quanto custa a rapadura de leite? Preço de banana, xará.
Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado
professor_odair@hotmail.com

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