domingo, 17 de janeiro de 2010

CRÔNICA
Enigmas da infância
Odair de Morais*
Especial para o DC Ilustrado
O menino veio correndo ao meu encontro. Tinha uma dúvida.
- Tio, o que é clipe?, perguntou.
Era um desses meninos que cruzam o pátio da escola num instante e depois de alguns segundos já estão de volta. Minutos depois é possível que você se depare com ele na secretaria da escola com a coordenadora lhe fazendo um curativo nas pernas ou estancando com bandaide o sangue que escorre pela sua fronte. Um menino suado, de cabelos despenteados, embora tenha acabado de sair para o intervalo. Recreio, como preferem dizer nessa idade escolar.
Perdoei o fato de o garoto ter me chamado de tio. É claro que ele não teve a intenção de ofender. Não sou tão velho. Embora alguns fios de cabelos brancos já comecem a despontar sobre as minhas orelhas, o tempo ainda vai demorar a tingi-los completamente de cinza. Assim espero. Olhei para o garoto, que por sua vez me olhava surpreso. Eu acabara de deixar a sala de aula. Alguns alunos que me acompanhavam seguiram em direção à cantina. Me agachei e olhei dentro de seus olhinhos curiosos.
- Pequenino, eu disse, clipe é um pequeno objeto de metal ou de plástico que serve para prender folhas de papel.
O menino me olhou desapontado. Chutou algumas pedrinhas, como se eu tivesse acabado de colocá-lo de castigo.
- Não, tio. Clipe da lua... O senhor não sabe? - Ah! da lua você quer saber...
Ele se referia ao eclipse lunar. E óbvio: não conseguia pronunciar a enigmática palavra. Apesar de ter considerado o fato de que ele talvez estivesse querendo saber algo relacionado a videoclipes, asseguro que eclipse lunar nem de longe havia passado pela minha cabeça.
Tentei ser claro o suficiente sem ser pernóstico: - Eclipse lunar ocorre quando os astros, como o sol, a lua e a terra, por exemplo, se alinham no espaço. A terra, estando diante do sol, pode criar sombra e deixar no escuro a lua. Tentava não ser obscuro. Tudo que eu menos queria era causar um eclipse no entendimento do menino. Os leitores podem considerar minha resposta um tanto quanto professoral, digamos assim. Juro, porém, que tentei ser o mais claro possível. Se tiverem definições mais simples, enviem para o meu e-mail, por favor. Mas lembrem-se, há que se considerar um interlocutor de cinco anos de idade.
O fato curioso é que no minuto seguinte o menino já corria pelo pátio outra vez, disparadamente, gritando o nome dos coleguinhas. Confesso que cheguei a pensar, orgulhoso: Por certo, vai divulgar o que acaba de aprender. Ao término das aulas, tomei o caminho de casa, mas não pude deixar de recordar uma noite perdida em algum lugar do passado, num tempo em que eu também não sabia pronunciar a sombria e misteriosa palavra eclipse. Uma noite estrelada na qual primos, vizinhos e irmãos puderam ficar acordados até tarde numa amigável confraternização. Alguns adolescentes andavam aos pares pela rua, de mãos dadas ou abraçados. Eu via tudo através do portão. Alguns se beijavam sob a mortiça luz da lua. Altas horas, enquanto a parentalha se ajudava a subir no muro e até mesmo no telhado de casa, eu aguardava em silêncio, circunspecto e taciturno – um cientista observando a passagem do cometa Halley através de um prato fusco. Foi em 1986. Eu tinha quatro anos de idade. Sabia apenas que a qualquer momento, em algum lugar do céu, alguma coisa espetacular aconteceria. Deveria estar dormindo, conforme diziam. Me obrigaram a ficar calado. Imagina se papai acordasse? Não permitiram que eu subisse no muro. Tive que assistir àquele momento mágico, sozinho, qual um poeta desprezado, encolhido a um canto, sentado em uma pilha de tijolos de oito furos.
* Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado professor_odair@hotmail.com

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