sexta-feira, 19 de março de 2010

CRÔNICA
Amados, enganos e telefonemas


Há alguns anos uma moça vivia ligando lá pra casa à procura de um certo Ricardo. Não sei exatamente se era moça, no sentido absoluto do termo. Mas digamos que fosse, devido à tamanha carência afetiva que apresentava e, sobretudo, à inocência que demonstrava haver em seu peito. Costumava ligar à noite. Preferencialmente, durante as novelas. Era bastante metódica e não aceitava ouvir que não havia nenhum Ricardo em casa: “Uai. Foi ele mesmo que me passou esse número...” Insistia, tornava a ligar. E acabou me vencendo pelo cansaço. Vesti o personagem, um pouco por curiosidade. Queria entender a cabeça daquela moça que vivia correndo atrás do tal Ricardo, e por que motivo ele a havia abandonado, deixando apenas um numero de telefone que evidentemente não era o dele.
Chamava-se Ângela. Anjo no nome e muito provavelmente em sua castidade. Não se pode dizer o mesmo de suas feições, que de certo nunca foram angelicais – exceto no nascimento, imagino. A beleza nunca foi inoportuna. Ângela, por outro lado, chegava a ser inconveniente – ao menos no começo, quando eu ainda não a conhecia. A coitada era fanha. Além de fanha, meio curta de raciocínio. Talvez por isso eu a imaginasse bastante machucadinha (e com um buraco na cara, em vez do nariz). Todas as vezes que falava com ela, me lembrava do poema do Bandeira, o qual nos olhos de certas feias era capaz de enxergar uma menina que é batida e pisada e nunca sai da cozinha. (Sei que podem existir fanhas lindíssimas, mas nesse caso era preferível não arriscar.)
Sua fala era pura, inocente e nasalada. Havia também algum desespero grudado nela – a moça do saco furado que chora ao ver as laranjas se perdendo ladeira abaixo. Mostrava-se incrivelmente fragilizada. Confesso que no início cheguei a supor a possibilidade de trote. Mas não era. Tudo que ela precisava era de um bom papo. Gostava de conversar. Penso que após aquelas conversas ela ia dormir um pouco mais confortada. Funcionava como uma espécie de terapia, pois, pra ela, pouco importava se deste lado da linha estivesse eu ou meu irmão, dez anos mais velho, se passando pelo Ricardo. (Não disse que ela era meio lesada?) Evidente que nossas vozes não eram nem um pouco parecidas. Meu irmão tinha a voz grave, e era metido a cantor, enquanto eu, em torno dos quinze anos, desafinava até pra iscar cachorro.
Ângela tratava de assuntos triviais: uma pracinha no bairro onde morava, namoros ao luar e coisas do tipo. Era babá, se não me engano. Ou secretária. Nunca chegamos a marcar um encontro. Ao que tudo indica, não estava interessada. Ao menos, não demonstrava. Exceto na vez em que cogitou que fossemos juntos a um show do Amado Batista no Galpão – uma casa noturna bastante popular em Várzea Grande – o que, de certa forma, reforçou o estereótipo e a imagem evocada pelo poema de Bandeira. Imagino que ela tivesse um pôster do Madão na parede do quarto, acompanhava todos os lançamentos dos álbuns, tendo em vista que era extremamente fascinada pelo galã das empregadas domésticas.
Não sei dizer se ela continuou a ligar. Até porque, algum tempo depois, vendemos a casa. E, por um problema qualquer com a companhia telefônica, fomos obrigados a mudar o número. Nunca mais tivemos notícia nem de Ângela (Será que hoje ela mantém os seus diálogos via messenger?) nem de Ricardo. Que, sinceramente, depois de algumas conversas, ficou difícil até mesmo pra ela provar que tivesse existido.

Odair de Morais é escritor, acadêmico de Comunicação Social na UFMT, e colabora com o DC Ilustrado.
professor_odair@hotmail.com

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