segunda-feira, 29 de março de 2010

A nossa saga e a sagacidade de Lulu

CRÔNICA
A nossa saga e a sagacidade de Lulu

Odair de Morais


Eu estava voltando pra casa. Os moleques batiam uma bola na rua. A bola veio quicando ao meu encontro, sorridente, perfeita pra se pegar de primeira! Bater em cheio, num toque de classe com o peito de pé – assim como o Bebeto fazia na seleção brasileira. Mas pra que desfazer dela assim, de imediato, pensei, sendo que podia mostrar pra aqueles meninos a minha intimidade com a pelota? Um amigo me contou recentemente que colocou o filho de seis anos de idade para treinar em uma escolhinha. E que acompanha os treinos do garoto três vezes por semana. Imagino que a decisão tenha sido impulsionada devido às últimas goleadas do Santos, tendo em vista pai e filho são santistas convictos. O menino, por exemplo, vive recitando pela casa as jogadas de Neymar e Ganso. Quando lá estive, ele quase acertou o lustre em cobrança de tiro livre direto. Quando criança o time do nosso bairro era obrigado a fazer incríveis peregrinações aos domingos. Para chegar até o local onde havíamos combinado a realização do amistoso, caminhávamos de cinco a sete quilômetros. Verdadeiros párias do futebol, padecíamos devido à falta de um gramado no qual pudéssemos mandar os nossos jogos – por isso as partidas eram realizadas sempre em um local muito distante de onde morávamos. Ou no Carrapicho ou no gramado do Independente. Independente disso, cumpríamos a nossa saga. Tal qual um sineiro diante das casas, Dener chamava: “Vambora, Lelé. Vambora, Valmir. Vambora, Nicinho.” Dener (também conhecido por Caratê devido a um golpe que lhe deixou uma profunda cicatriz na testa) não era o técnico, mas a ladainha gritada por ele minutos antes de partirmos em procissão divulgava na vizinhança a convocação dos últimos selecionados que integrariam o elenco do combinado local. Lelé era um de nossos goleiros. Principalmente por causa de sua estatura. Lamentavelmente, devido ao seu peso. Muito eficiente nas bolas altas, lá em cima era dele. Não tinha pra ninguém. Pra você ter uma ideia, um dia, ao se dependurar na trave, o nosso Obelix arrancou o travessão. E o jogo teve que ser interrompido. Me lembro do divertido comentário de um morador do Carrapicho, seguido do gesto em torno da orelha: Lelé da cuca. Incrível como caminhávamos aquilo tudo e ainda tínhamos disposição para correr durante a partida. Não se tratava apenas de força de vontade. Era o medo antecipado do calvário do regresso. Sobretudo porque os jogos eram apostados. O time vitorioso levava pra casa um engradado de tubaína. Isto é, se vencíamos, voltávamos tomando refrigerante. E era a glória. Em caso de derrota, voltávamos com a garganta ressecada pela sede e ainda mais castigada devido a poeira daqueles descampados. De todos os nossos jogos, um, em especial, não me sai da memória. Foi uma partida disputadíssima. 2x2, no tempo normal. 1x1, após o primeiro tempo da prorrogação. Estávamos exaustos. Metade do time com câimbras. E ainda havia a cobrança de pênaltis, caso segurássemos o empate. Já havíamos desperdiçado um pênalti na primeira etapa, tão bem cobrado, goleiro pra um lado e bola pro outro. Ainda que adivinhasse o canto, o goleiro não a alcançaria nunca. A bola fora chutada com força, à moda Sócrates, pra correr junto a rede. Por azar, acabou explodindo contra o poste... Temendo o pior, Lulu (que todos diziam que era nome de cachorro), tio de Lelé e uma espécie de líder do time, foi até o campo adversário tentar um acordo. Na pior das hipóteses, ia tirar o time de campo. Acreditava que era injustiça ter que disputar a prorrogação sendo que vínhamos de tão longe. Minutos depois ele reuniu a rapaziada e disse: Pessoal, é o seguinte. Resolvi a parada. Combinei com o goleiro deles. (De fato, tínhamos visto os dois atravessarem o gramado conversando amigavelmente). É só chutar no gol que ele vai deixar passar. No final do jogo, a gente dá a metade do prêmio pra ele em dinheiro. Já tá tudo acertado. Não me sinto seguro o suficiente pra afirmar quem anotou o gol da vitória. Foi um gol chorado. Após um bate-rebate danado na área, a bola foi entrando devagarinho, relutantemente, como se oferecesse chances pro goleiro se redimir no lance. Enquanto voltávamos, Lulu nos revelou a inexistência da trapaça. Ainda muito jovem, havia aprendido que no futebol, assim como na vida, para se ter êxito é preciso uma boa dose de motivação e auto-estima. Como ele mesmo explicou depois, não custa nada acreditar que numa hora dessas o goleiro adversário vai falhar. E que, mais cedo ou mais tarde, a gente vai acabar empurrando a bola pro fundo da rede. Não importa como. Até porque, não existe gol feio. O feio é não fazer gol, como dizia Dadá Maravilha.

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