sábado, 3 de abril de 2010

CRÔNICA
Na casa de meu avô

Vovô montado em seu cavalo, no Pantanal.


Venho de um lugar longínquo, perdido nos confins do velho Mato Grosso. Meu avô atravessou cidades montado num cavalo baio, que, em vez de vir a galope, coitado, vinha nadando na superfície do território alagado. Naquela época, no período das cheias, os da lagoa costumavam dar bom-dia rente à porta de casa: os jacarés, por exemplo, tomavam sol no jirau, à moda calango. Estáticos. Enormes. Esperavam o peixe de papo pro ar. Havia peixe à ufa. Quando vinha pra capital, meu avô jamais estava só. Um filho o acompanhava pra não sofrer nenhum revertério no caminho. A viagem custava pra mais de três dias. O restante do pessoal chocava no sítio à espera.
O guaraná tomado pelo meu avô não era o mesmo que eu tomava em criança, embora ambos tomássemos o guaraná predileto. Meu avô fazia uso do guaraná comprado no Porto, em bastão, o qual, antes de ser diluído em água e servido com açúcar num copo americano, tinha que ser ralado na grosa. O meu Predileto, por outro lado, era conseguido com muito menos esforço, a poucos metros de casa, na venda do seo Darci. E, caso mãe permitisse, podia até ser tomado no canudinho, ali mesmo no bar, junto ao balcão, na ponta dos pés. Mas refrigério mesmo era ouvir, na casa de meu avô, a colherinha tilintando no fundo do pequeno copo de vidro!


Contemporâneas de expressões como matula, réiva, piraí e bambolê (o mesmo que marmita, raiva, chicote e chinelo, respectivamente), Alazão, Baio e Zaino estavam para os cavalos assim como Wolks, Peugeot e Fiat estão para os autos de hoje em dia, segundo o seu vocabulário. Faço caçoada falando assim? Tá por fora. Me sinto mais ligado às origens quando visito a casa de meu avô. Certa vez, com o intuito de me ensinar a pontear a viola, ele quis fazer de mim um cururueiro. Lutei pra aprender, mas acredito que acabei o decepcionando, pois fui incapaz de alcançar o som gotejante da viola de cocho. (Há alguns anos, eu estava casado e vivendo longe da família. Acordei em transe, no meio da noite. Guiado pela animação dos músicos, fui parar em frente de uma casa, na qual estava havendo uma festa de santo. Me sentei num velho banco de madeira. Tomado pelas recordações, cobri o rosto com as mãos chorando.)
Na década de 60, meu avô sofreu um acidente na ponte Júlio Muller, que liga as cidades de Cuiabá e Várzea Grande. Ele conduzia uma charrete. O cavalo se assustou ao ver uma tombeira (caçamba, como se diz atualmente) se aproximando. Chocaram-se, então, o antigo e o moderno de um estado ainda em vias de desenvolvimento. Tudo isso eu soube pela boca dos outros. Meu avô não curte que a gente trele no passado dele. Mas eu remexo, com um graveto, em suas memórias ancestrais. Evoco uma planície alagada, uma planta milagrosa, uma funda feita de tronco de goiabeira pra caçar passarinho... Retiro, quando muito, um fato corriqueiro metido, por acaso, junto de sua rapadura simples e ferramentas de trabalho em seu embornal. Aos noventa e três anos de idade, primo, o silêncio é que o faz eloquente.
Acho que meu avô sente saudades de si.

Odair de Morais é escritor e colabora com o DC Ilustrado
e-mail: professor_odair@hotmail.com

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