Curas atribuídas a Doninha do Tanque Novo transformaram-na em uma referência na Poconé dos anos 30
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Da Reportagem
Rio de Janeiro, 1931. As forças políticas do país começam a se reorganizar após o bem-sucedido levante que conduziu Getúlio Vargas ao poder, no ano anterior. A Constituição Federal, em vigor desde 1891, está dissolvida, assim como os poderes do Legislativo e do Judiciário. Nos estados, interventores nomeados pelo Governo Central é que determinam os novos rumos da política.
Poconé, 1931. Laurinda Lacerda de Cintra, 27 anos, grávida do terceiro filho, retorna da colheita de sua roça de mandioca. Além da fome, com a qual havia se habituado nos últimos tempos, a aflige a inesperada visita de uma moça de olhos claros e rosto sereno, vestida de branco, bonita como nunca vira outra igual. Maria da Verdade era o seu nome.
Em menos de dois anos, a por ora inexistente conexão entre estes dois eventos levará a pequena cidade pantaneira a um conflito armado envolvendo política, religião, velhas e novas oligarquias, curas milagrosas, morte e fé.
Seu desfecho, com a destruição completa de um arraial nas cercanias do município, marca um capítulo fascinante e pouco conhecido da história de Mato Grosso. Uma trama que terá Laurinda - a quem a família e os amigos chamavam Doninha - e Maria da Verdade como protagonistas.
Neste momento, porém, Doninha sequer imagina o que o destino lhe reserva. Assustada, tendo nas mãos o resultado da colheita, ela tenta sem sucesso entender como aquela moça - que marcou encontro para o dia seguinte, no mesmo horário e local – era capaz de pairar como nuvem, sem tocar os pés no chão. Quem era? O que queria?
DONINHA - Nascida em 19 de março de 1904, Doninha foi a nona entre os doze filhos de João e Ernestina Lacerda Cintra. Como todos os irmãos, cresceu no sítio “Tanque Novo”, de propriedade de seus pais, distante 25 quilômetros da sede do município de Poconé.
Sempre foi a mais introvertida da família, a tal ponto que seus irmãos, e até mesmo sua mãe, tinham-na como abobalhada e incapaz. A rejeição se tornou mais forte quando, ao chegar em idade escolar, Doninha não aceitou a mudança para a cidade, onde todos os outros irmãos haviam estudado.
Em uma família que se esforçava para freqüentar a rica sociedade poconeana, aquela integrante tímida e analfabeta era vista como um estorvo.
Sendo assim, quando não estava só, Doninha era mais vista junto aos empregados, com os quais se identificava. E foi nos ambientes de convívio da criadagem que ela, ao completar 20 anos, se apaixonou pelo vaqueiro José Odário Nunes, um funcionário de seu pai.
O namoro proibido foi mantido em segredo até que Doninha, aos 22 anos, se descobriu grávida. Revoltada com a situação (José Odário chegou a tentar fugir com a namorada, para não ser espancado ou mesmo morto), a família exigiu que Doninha fosse viver com o vaqueiro por sua conta e risco, num pedaço de chão distante da sede do sítio.
Isso explica porque ela, embora herdeira de considerável parcela de terras, gado e benfeitorias, estava a trabalhar sozinha na lavoura quando, em 20 de fevereiro de 1931 - aos 27 anos -, foi surpreendida pela aparição de Maria da Verdade. A mandioca extraída ali, e o leite de uma vaca, eram há tempos as únicas fontes de alimento da família.
MARIA DA VERDADE – Naquele dia, ao voltar para casa, Doninha não conseguiu mais do que colocar desconfiança na cabeça de José Odário. O marido recomendou que ela fosse ao encontro com a tal moça, mas custava a acreditar no que tinha acabado de ouvir - chegou a cogitar que a mulher houvesse perdido o juízo, mas preferiu esperar.
No horário marcado, Maria da Verdade reapareceu. Sempre com um tom doce na voz, assegurou a Doninha não haver motivos para medo. Depois pediu que mandasse um recado a José Odário: ele deveria plantar um broto de cana, bem junto ao lado direito do quintal de casa.
O casal não entendeu o que aquilo significava, mas cumpriu a ordem mesmo assim. Na manhã seguinte, logo cedo, o lavrador correu para ver o resultado e, para sua surpresa, notou que a planta já tinha quase 30 centímetros.
Doninha e o marido chamaram os vizinhos para relatar o ocorrido. Logo, o burburinho sobre a “santa” e seu milagre, começou a ganhar léguas, se espalhando rapidamente por entre peões, sitiantes e fazendeiros da região. No mesmo dia, a família já sabia do que se passava com a filha renegada - sua mãe Ernestina, muito doente, teve medo de que o demônio estivesse por trás das visões.
A possibilidade foi negada pela própria santa que, em um novo e decisivo encontro, repassou à Doninha a receita para a cura da enfermidade de sua mãe (um chá com as folhas do pé de cana) e também a resposta para a misteriosa doença que ameaçava a vida de outro parente próximo.
O sucesso imediato de ambos os tratamentos cunhou no coração de todos a certeza de que se estava diante de um fenômeno real. E despertou uma multidão de gente que, dos mais diversos lugares, rumou para o Tanque Novo em busca de esperança.
Quando seu pequeno sítio recebeu a primeira leva desses doentes, Doninha já sabia quem era a moça misteriosa e, principalmente, o que ela queria.
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