sábado, 11 de junho de 2011

Vila Bela tem histórico de violências

Vila Bela tem histórico de violências

Primeiros vieram os portugueses, depois os posseiros com certidões de terra inventadas em cartório


Ao longo dos tempos, os negros criaram expressões culturais típicas, como a Festança da Santíssima Trindade, o Congo e o Chorado
ORLANDO MORAIS
Da Reportagem

Em 1835, a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade ficou praticamente deserta. A decadência do ouro, a mudança da capital da província para Cuiabá e uma onda de mortal febre fizeram com que os portugueses abandonassem as casas e seus móveis, a natureza e sua exuberância, os escravos negros e sua sorte. Até então, os escravos viviam em arraiais em volta da cidade — onde plantavam a comida dos seus “senhores” —, ou na cidade mesmo, para servir-lhes a comida no prato.

De repente, não havia mais senhores e os negros estavam livres: podiam entrar nas casas – que afinal eles mesmos haviam construído —, utilizar o móveis, fazer uma grande festa na praça. Não fizeram, porém, nada disso, pois uma coisa ainda os escravizava: o medo de que os portugueses voltassem. Era mais prudente fugir, ou, no máximo, ficar nos arraiais, à espera.

É bastante afirmar que os negros demoraram oitenta anos para ocupar definitivamente a cidade, tal era o medo que sentiam, tamanha era a violência com que haviam sido tratados. Os olhos viam a liberdade, mas a escravidão se sentia, e havia ficado marcada, na pele.

Vale dizer que os portugueses não levaram os escravos porque temiam que eles lhes passassem a febre, “maculo” chamada, sobretudo sendo tão longa a viagem até Cuiabá, nada menos que 550 quilômetros. Por puro preconceito, pois os próprios portugueses foram os disseminadores da doença, uma vez que eram mais suscetíveis do que os negros. Vale dizer também que os portugueses nunca mais voltaram. No século seguinte, a escravidão já era crime e os negros de Vila Bela puderam cultivar sentimentos que se traduzem hoje numa cultura riquíssima e num modo de viver peculiar.

De acordo com a historiadora Maria de Lourdes Bandeira, em seu livro Território Negro em Espaço Branco (1988), “os pretos herdaram uma cidade em ruínas, massa falida do colonialismo irracional e predatório”, escreve ela. “Apropriaram-se paulatinamente da cidade (...) e enfrentando os limites impostos pela experiência da escravidão, assumiram o desafio de produção da sua comunidade, da vida social e cultural, reelaborando suas relações com a natureza e suas relações entre si, tendo como postulado o igualitarismo, e como princípios constitutivos a solidariedade e a reciprocidade”.

A paz dos negros, porém, durou até o final da década de 1960, quando a violência do homem branco retornou sob a forma de grandes posseiros de terras. À diferença dos portugueses, estes não tinham bandeiras, mas certidões lavradas em cartórios criados justamente para inventá-las; e não queriam o ouro, mas a terra — que até então era coletiva, era de quem nela trabalhasse. E à semelhança dos bandeirantes, os posseiros vinham armados, sob o incentivo do governo e em nome da civilização.

Desde o início até os dias de hoje, a história de Vila Bela da Santíssima Trindade é a história da violência contra os negros — e de como eles reagiram a tal violência. Assim, da religião católica imposta pelos portugueses, os negros construíram expressões culturais como a Festança da Santíssima Trindade, o Chorado e a Dança do Congo, realizadas no mês de julho. “E durante o período de escravidão, os negros articularam várias lutas como forma de pôr fim ao regime”, diz o professor do Departamento de Letras da Unemat, José Leonildo Lima. “As práticas mais constantes foram o suicídio, o assassinato, a fuga e a organização de quilombos”.

Por sinal, o primeiro quilombo organizado em mato Grosso foi o do Quariterê, na região de Vila Bela, no século 18. Ali, sob o comando da rainha Teresa de Benguela, a paz reinou até 1770, quando uma bandeira chefiada pelo sargento-mor João Leme do Prado destruiu o quilombo assassinando 54 pessoas. Teresa de Benguela se suicidou, mas outros 54 negros que fugiram dali para formar o quilombo Piolho, segundo mais importante do Estado.

LEIA TAMBÉM

Feriado de Zumbi suscita reflexões
Comércio não concorda com lei municipal
Quilombo dos Palmares abrigava mais de 30 mil
Negros têm história de lutas
Vila Bela tem histórico de violências
Princípio ético garantiu a sobrevivência
Município está em uma das mais belas regiões do país
Cidade é pobre e não oferece alternativas para moradores
Símbolo de uma luta quase centenária
Antônio Mulato planta de acordo com a Lua
Proposta do governo não é aceita por grupo
Mato Grosso tem pelo menos 21 áreas de remanescentes
Rebeldia era punida com tortura
Antônio Corrêa foi ‘disputado’
Lagoinha de Baixo abrigou recém-libertos
fonte:
http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=77294

Nenhum comentário:

Postar um comentário